segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Anatomia do ego
O cérebro decifrado por Damásio e Nicolelis - FSP 25/09
RESUMO
Dois neurocientistas compõem retratos do cérebro como um órgão ainda mais complexo e maleável do que se pensava: enquanto o brasileiro Miguel Nicolelis busca implantes cerebrais para tentar fazer paraplégicos andarem, o português António R. Damásio quer ir mais longe e descobrir os mistérios da consciência.
MARCELO LEITE
EM CONDIÇÕES NORMAIS, seria descabido citar numa mesma resenha o último livro do português António R. Damásio e o do brasileiro Miguel Nicolelis. A primeira obra de divulgação de Nicolelis, "Muito Além do Nosso Eu", é um bom trabalho. Damásio, por sua parte, escreveu mais uma obra-prima: "E o Cérebro Criou o Homem".
Há muitas razões para reuni-los, e não só pelo fato de ambos terem o português como língua materna e escreverem em inglês. Damásio e Nicolelis são exemplos excepcionais de pesquisadores da periferia que venceram na arena mais sangrenta da ciência mundial, os Estados Unidos. Confirmam, com isso, a regra de que emigrar é o primeiro passo na senda do sucesso e da fama em ciência natural.
Nicolelis tornou-se uma celebridade no Brasil. "Voltou" ao país para fundar o Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), na periferia da periferia -voltou entre aspas, pois seu domicílio principal ainda é Durham, na Carolina do Norte, onde detém cátedra na Universidade Duke.
Tem bom trânsito na cúpula petista. Leva plateias às lágrimas quando promete o pontapé inicial da Copa de 2014 por um brasileirinho paraplégico metido num exoesqueleto. Protagonizou o mais rumoroso rififi da pesquisa nacional em tempos recentes: um racha no embrionário IINN-ELS, que levou à migração de seus principais cientistas para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
A boa surpresa é que Nicolelis, entre tantas idas e vindas, produziu um livro interessante, culto e informativo. Não sem problemas, como tudo. E eles começam pelo subtítulo: "A nova neurociência que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas".
PENSAMENTO SÍMIO Nicolelis notabilizou-se como pesquisador porque seu grupo conseguiu fazer macacos moverem robôs "só com a força do pensamento": microeletrodos inseridos no cérebro do animal amostram sinais elétricos que, interpretados por computadores, reproduzem nas máquinas movimentos harmoniosos comandados pelo símio.
É uma façanha e tanto. Pode não ser suficiente para ganhar um Nobel -o tempo dirá. E por certo é insuficiente para funcionar como princípio explicativo da "nova neurociência", que mal começa a orientar-se no labirinto da malfadada dicotomia mente-cérebro. Serve, contudo, como fio condutor de uma história cativante.
Para fazer funcionar e para explicar os feitos de seu aparato biônico, Nicolelis toma partido em favor dos "distribucionistas" de Thomas Young [1773-1829], contra os "localizacionistas" de Franz Joseph Gall [1758-1828]. Ou seja, o cérebro não se reduz a um mosaico de módulos especializados (visão, tato, linguagem etc.), muito menos a uma coleção de neurônios correspondentes a objetos únicos.
Opera mais como uma orquestra: timbres, sons, notas e ritmo compõem o concerto de vozes e naipes que constitui uma sinfonia.
"Muito Além do Nosso Eu" [trad. Miguel Nicolelis, 552 págs., R$ 39,50] se abre com uma bela narrativa sobre música, conhecimento e ciência, a partir de um episódio vivido pelo autor quando ainda estudante na Faculdade de Medicina da USP.
A homenagem ao mentor César Timo-Iaria convoca a ópera "Parsifal", de Richard Wagner, para introduzir o funcionamento do cérebro como um processo sinfônico. Cada sucessão de pensamentos, percepções, imagens ou ordens motoras corresponde à ativação (disparos simultâneos) de populações de neurônios em diversas partes do órgão.
À metáfora operística segue-se a política: populações podem produzir eventos espantosamente coordenados, como o comício do movimento Diretas Já em 16 de abril de 1984, na praça da Sé paulistana.
De analogia em analogia, a narrativa de Nicolelis flui sem maiores impedimentos (a não ser por tropeços aqui e ali, como uma anedota deslocada sobre o tenor italiano Enrico Caruso e o presidente americano Ted Roosevelt). Quase leva o leitor a esquecer que está diante, ainda assim, de uma árida aula de neuroanatomia e neurofisiologia.
MOTOR CENTRAL Lição enviesada, porém. Em que pese o esforço perceptível de oferecer visão abrangente do funcionamento do cérebro, Nicolelis não chega a compor uma explicação da mente conciliável com a experiência interior de quem o lê -e que busca na literatura de divulgação sobre neurociência justamente a oportunidade de ir um pouco além do próprio eu.
Tudo, no livro, acaba girando em torno do tema da motricidade, que afinal é a área de especialidade do pesquisador da Duke. A concepção de um cérebro não compartimentado e plástico (em constante adaptação), mesmo que em perfeita sintonia com a neurociência contemporânea, serve a um propósito mais pragmático que elucidativo: promover o programa de pesquisa de Nicolelis como a revolução que (ainda não) é.
Tendo demonstrado e utilizado experimentalmente a incorporação de objetos exteriores (instrumentos, próteses, robôs) ao esquema mental do organismo primata, o autor parece encará-la como princípio organizador e até como razão de ser do cérebro.
"Acredito que essa fome do cérebro por incorporar ferramentas abrirá um novo capítulo na evolução", escreve, "oferecendo-nos meios de estender nossos corpos, alcançando talvez a imortalidade, de uma maneira muito particular: preservando nosso pensamento para a posteridade."
Em lugar de morte cerebral, vamos todos um dia brindar o "upload" de nossos egos numa máquina. Pode ser. Mas isso está muito além -demasiado além- do nosso eu, aqui e agora, em geral atormentado por coisas menos devastadoras que paralisia, cegueira ou surdez, como lembranças ruins, compulsão por comida ou drogas, depressão.
Damásio prefere andar para trás, no passo da evolução por seleção natural, o que lhe permite alcançar explicações a um só tempo mais modestas e mais portentosas. Seu olhar é retrógrado, e sua engenharia, reversa. O subtítulo de seu livro, em inglês, trai o escopo ambicioso: "Construindo o cérebro consciente" -já o título inspirado, "Self Comes to Mind", foi vertido pela editora brasileira como um pobre "E o Cérebro Criou o Homem". O livro chega no final de outubro às livrarias brasileiras, pela Companhia das Letras [trad. Laura Motta, 416 págs., R$ 49].
BRAÇOS-FANTASMAS Curiosamente, os dois autores dedicam muitas páginas e um lugar central nas respectivas obras ao intrigante fenômeno neurológico dos membros-fantasmas (e a maneira ainda mais intrigante de tratá-lo, com uma caixa de espelhos). Pessoas amputadas não só podem manter a percepção de membros perdidos como experimentar sensações concretas nele, por exemplo coceira e dores lancinantes. (Um terceiro livro, "Proust Foi um Neurocientista - Como a Arte Antecipa a Ciência", do jornalista americano Jonah Lehrer, também se debruça sobre essas e outras fantasmagorias, como a concepção de memória do escritor francês, e propicia leitura bem mais leve.)
Seria um fiasco tentar reproduzir aqui, em poucas linhas, a complexidade do distúrbio e da cura; além disso, iria desmanchar parte do prazer do leitor de Nicolelis e Damásio. Basta dizer que os membros-fantasmas dão testemunho da refinada capacidade do cérebro de mapear e monitorar, a todo instante, estado e posição de cada parte do corpo. Mais ainda, uma capacidade de sintetizar a miríade de sensações e informações que permitirá a emergência evolutiva de um "self" e depois de um "eu autobiográfico".
Em biologia, recorda Damásio, não existe lugar para dicotomias como corpo/mente. Há que entender o contínuo de complexidade que evolui dos automatismos do sistema nervoso de uma medusa e passa por vários graus de "senciência" (como diria o bioeticista Peter Singer) até a barroca mescla de imagens, memórias e conceitos que caracteriza a consciência.
Na sua versão completa, esta faculdade superior só existe em humanos, mas é fácil reconhecer seus componentes e precursores em outros primatas, cães e golfinhos, entre outros.
CORPO X MENTE Na base de todos os fenômenos mentais está a sobrevivência, ou o que o pesquisador português chama de regulação homeostática (equilíbrio do organismo com o meio). Neurônios são células especiais, porque seu metabolismo propicia reter, transmitir e processar informação, mas nem por isso deixam de ser células e de ter metabolismo. A mente só faz sentido e só pode funcionar na companhia de um corpo que sente, reage e atua. O valor fundamental é biológico; mesmo quando a consciência e a cultura emergem, sua meta é a de uma vida melhor (ou deveria ser).
O bonito da obra de Damásio está em apontar o correlato dessa perspectiva unicista -cuja inspiração ele busca em Baruch Spinoza [1632-1677], contra René Descartes [1596-1650]- na própria anatomia conectiva do cérebro e na arquitetura da mente, que para ele remontam ao mesmo. O pensamento nasce ele próprio corporal, fibroso.
O "self" mais primitivo se compõe de meras "disposições", aquilo que o corpo sente na presença de certos objetos e situações, disposições essas integradas por meios das estruturas mais antigas do cérebro, como o tronco cerebral e o hipotálamo. A elas vão se somando, sobretudo na evolução dos mamíferos, funções mais complexas como imagens (representações detalhadas de objetos por redes de neurônios no córtex cerebral), sentimentos (representações de emoções) e memória (recuperação de representações), às quais Damásio vai correlacionando estruturas e redes de estruturas encefálicas.
MARCAS INESQUECÍVEIS Surge para os olhos da mente do leitor, aos poucos, um modelo -complicado e conjectural, mas um modelo- sobre como opera seu próprio cérebro. Nesse modelo, o "eu" mais primitivo das disposições não desaparece nem é relegado a funções subalternas.
Ao contrário, constitui uma peça-chave na capacidade de recuperar memórias e integrá-las na narrativa coerente, ou quase, que articula o que se poderia chamar de "eu consciente" (ou autobiográfico). Sem esse "self nuclear", seríamos incapazes de orientar nossa conduta no mundo com base num conjunto de imagens interiores.
Para Damásio, as emoções mais fundamentais associadas com os objetos e acontecimentos permanecem como as marcas que permitem reativar os circuitos de neurônios corticais que representam esses objetos e acontecimentos. O fio da meada, por assim dizer. É mais prudente aqui dar a palavra ao próprio autor, sob pena de empobrecer sua prosa esclarecedora:
"[...] as fundações do processo de consciência são os processos inconscientes a cargo da regulação da vida -as disposições cegas que regulam funções metabólicas e estão alojadas nos núcleos do tronco cerebral e do hipotálamo; as disposições que oferecem recompensa e punição e promovem impulsos, motivações e emoções; e o aparato mapeador que fabrica imagens, na percepção e na recordação, e que pode selecionar e editar tais imagens no filme conhecido como mente. A consciência é só a última a chegar para o gerenciamento da vida, mas leva todo o jogo uma etapa adiante. Espertamente, ela mantém os velhos truques à mão e deixa que eles façam o trabalho mais pesado".
Nesta altura, com a entrada em cena do tema do inconsciente, o leitor já estará pensando em Sigmund Freud ou no tópico não menos abrasador da responsabilidade moral. Não são poucos os que, movidos talvez pela dificuldade de manter as rédeas do próprio "self", cedem à compulsão de gritar "fogo" no inseguro edifício civilizatório, quer dizer, arriscam lançar a questão subversiva: se o que tomamos por decisões e comportamentos conscientes são no fundo ditados por disposições inconscientes, como exigir a responsabilização de qualquer sujeito por seus atos?
ILUSÃO DE ÉTICA Damásio não foge da dificuldade, e sua resposta vem dura e brilhante: a consciência não é um epifenômeno inútil ou manifestação ilusória da complexidade cerebral. Quem assim pensa se esquece de que o aparente automatismo das disposições inconscientes é também ele produzido e canalizado pelo histórico de decisões, emoções e ações que constituem o eu autobiográfico.
"Comportamentos morais são um conjunto de habilidades adquirido no curso de repetidas sessões de prática e ao longo de muito tempo, informado por princípios e razões conscientemente articulados e, no mais, inscrito como 'segunda natureza' no inconsciente cognitivo", ensina o autor.
Estamos aqui, já se vê, muito além das máquinas e dos determinismos -de volta à intricada anatomia do ego. Embora Nicolelis também extraia da neurociência uma mensagem de libertação e transcendência, ele a terceiriza para a tecnologia: máquinas conectadas ao cérebro rebentarão os grilhões que ainda ancoram o humano no animal.
Apesar de todo o seu patriotismo progressista e futebolístico, Nicolelis resulta pouco brasileiro na sua expectativa prometeica e tecnocientífica. O Brasil, mais afeito aos atalhos do jeitinho do que à disciplina laboriosa do conhecimento sistemático, precisa de mais cientistas e divulgadores como ele ou Marcelo Gleiser. Gente capaz de pôr na ordem do dia e no imaginário das pessoas, pela força do exemplo de sucesso no exterior, coisas tão complexas quanto a neurofisiologia e a física.
A neurociência propriamente dita, de sua parte, carece mais de figuras ousadas como o muito português Damásio. Este nos desafia a novos descobrimentos e convoca à aventura de buscar a libertação "da tirania das respostas imediatas" do cérebro com auxílio do maior legado da natureza para a humanidade: "Talvez a capacidade de navegar o futuro nas águas de nossa imaginação, guiando a embarcação do 'self' para um porto seguro e produtivo".
A concepção do cérebro não compartimentado e plástico serve a um propósito pragmático: promover o programa de pesquisa de Nicolelis como a revolução que (ainda não) é
Damásio prefere andar para trás, no passo da evolução por seleção natural, o que lhe permite alcançar explicações a um só tempo mais modestas e mais portentosas
O Brasil, mais afeito aos atalhos do jeitinho do que à disciplina do conhecimento sistemático, precisa de mais cientistas e divulgadores como Nicolelis ou Gleiser
A neurociência mais carece de figuras ousadas como Damásio, que nos desafia a novos descobrimentos e a buscar a libertação "da tirania das respostas imediatas" do cérebro
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